Sonhos do avesso
"Sonhos ao avesso", artigo criado por famosa psicanalista brasileira, que retrata psicanaliticamente a realidade contemporanea de nossas relações.
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dizem que Karl Marx descobriu o inconsciente três décadas antes de Freud. Se a afirmação não é rigorosamente exata, não deixa de fazer sentido desde que Marx, no capítulo de "O Capital" sobre o fetiche da mercadoria, estabeleceu dois parâmetros conceituais imprescindíveis para explicar a transformação que o capitalismo produziu na subjetividade.
São eles os conceitos de fetichismo e alienação, ambos tributários da descoberta da mais-valia -ou do inconsciente, como queiram. A rigor, não há grande diferença entre o emprego dessas duas palavras na psicanálise e no materialismo histórico. Em Freud, o fetiche organiza a gestão perversa do desejo sexual e, de forma menos evidente, de todo o desejo humano; já a alienação não passa de efeito da divisão do sujeito, ou seja, da existência do inconsciente. Em Marx, o fetiche da mercadoria, fruto da expropriação alienada do trabalho, tem um papel decisivo na produção "inconsciente" da mais-valia. O sujeito das duas teorias é um só: aquele que sofre e se indaga sobre a origem inconsciente de seus sintomas é o mesmo que desconhece, por efeito dessa mesma inconsciência, que o poder encantatório das mercadorias é condição não de sua riqueza, mas de sua miséria material e espiritual.
Se a sociedade em que vivemos se diz "de mercado" é porque a mercadoria é o grande organizador do laço social.
Não seria necessário recorrer a Marx e Freud para defender o caráter político das formações do inconsciente. Bastaria citar a frase "o inconsciente é a política", proferida por Lacan, que convocou os psicanalistas a se empenharem por "alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época". Mas insisto em recorrer aos clássicos para lembrar aos lacanianos extremados que a verdade não nasceu por geração espontânea da cabeça de Lacan.
Crise do sujeito
Se Freud fundou a psicanálise ao vislumbrar, no horizonte de sua época, as razões da insatisfação histérica, é nossa vez de tentar escutar o que mudou desde então, à medida que a norma produtiva/repressiva foi sendo substituída pela norma do gozo e do consumo.
Alguns sintomas, na atualidade, têm se tornado mais frequentes e mais incômodos do que as formas consagradas das neuroses e das psicoses no século passado. Hoje as drogadições, os transtornos alimentares, os quadros delinquenciais e as depressões graves desafiam os analistas a repensar a subjetividade. Isso não implica necessariamente que as antigas estruturas clínicas tenham se tornado obsoletas.
O que encontramos hoje nos consultórios psicanalíticos é um novo sujeito? Ou são novas expressões sintomáticas que buscam responder ao velho conflito entre as pulsões e o supereu -este representante das interdições e das moções de gozo, no psiquismo? O sujeito contemporâneo está mais próximo do perverso, que sabe driblar a falta pelo uso do fetiche? Ou é ainda o neurótico comum que, em vez de tentar seguir à risca a norma repressiva, tenta obedecer a um mestre fetichista que lhe ordena a transgredir e gozar além da medida?
Por enquanto, tenho escutado, em média, neuróticos mais ou menos estruturados tentando corresponder à suposta normalidade vigente, a qual -esta sim- já não é mais a mesma nem do tempo de Freud, nem do de Lacan.
A "crise do sujeito", outra face da chamada "crise da referência paterna", corresponde, a meu ver, ao deslocamento e à pulverização das referências que sustentavam, até meados do século passado, a transmissão da lei. Não se trata da ausência da lei na atualidade, mas da fragilidade das formações imaginárias que davam sentido e consistência à interdição do incesto -a qual, desde Freud, é considerada condição universal de inclusão dos sujeitos na chamada vida civilizada, seja ela qual for.
Se o homem contemporâneo sofre do que [o psicanalista francês] Charles Melman chamou de falta de um centro de gravidade, é porque as referências tradicionais -Deus, pátria, família, trabalho, pai- pulverizaram-se em milhares de referências optativas, para uso privado do freguês.
Culpa e frustração
O "self-made man" dos primórdios do capitalismo deixou de ser o trabalhador esforçado e econômico para se tornar o gestor de seu próprio "perfil do consumidor" a partir de modelos em oferta no mercado. Cada um tem o direito e o dever de compor a seu gosto um campo próprio de referências, de estilo, de ideais. Aparentemente, não devemos mais nada ao pai e ao grupo social a que pertencemos, dos quais imaginamos prescindir para saber quem somos.
Este aparente apagamento da dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos pessoas que se dizem culpadas de tudo. Não citarei, em hipótese alguma, falas dos que se analisam comigo: daí o caráter ligeiramente caricato dos exemplos que se seguem, como expressões genéricas da transformação que o mercado produziu nos discursos.
A antiga donzela angustiada com as manifestações involuntárias de sua sexualidade reprimida -lembrem-se de que Freud relacionou o tabu da virgindade e a moral sexual entre as causas do mal-estar, no início do século 20- hoje se sente culpada por não usufruir tanto do sexo, das drogas e do "rock and funk" quanto deveria. O obsessivo escrupuloso, acossado por fantasias perversas, agora se queixa de seu bom comportamento: queria ser um predador sem escrúpulos, eliminar os rivais, abusar sem pudor das mulheres.
As pessoas vivem culpadas por não conseguirem gozar tanto quanto lhes é exigido. Culpadas por não alcançar o sucesso e a popularidade instantâneos, por perderem tempo em sessões de análise -culpados por sofrer. O sofrimento não tem mais o prestígio que lhe conferia o cristianismo. Sofrer não redime a dívida; ao contrário, reduplica os juros.
Sem recurso à referência a autoridades repressivas que faziam obstáculo aos prazeres, as pessoas têm dificuldades em justificar seus sintomas. Não encontram a quem endereçar suas queixas ou apoiar seus ideais.
"Meus pais são amigos, meus professores são legais, ninguém me impõe ou me impede nada: eu sou um otário porque não consigo ser feliz". O sentimento de culpa, como escreve [o sociólogo francês Alain] Ehrenberg, tomou a forma de sentimento de insuficiência. Assim, a resposta à dor psíquica não é buscada pela via da palavra, mas pelo consumo abusivo dos psicofármacos que prometem adicionar a substância faltante ao psiquismo deficitário. O remédio age em lugar do sujeito, que não se vê responsável por seu desejo e por suas escolhas.
Não se concebe a vida como um percurso de risco que inclui altos e baixos, incertezas, acertos, dúvida, sorte, acaso. A vida é um empreendimento cujos resultados devem ser garantidos desde os primeiros anos -daí o surgimento de uma geração de crianças de agenda cheia de atividades preparatórias para a futura competição por uma vaga promissora no mercado de trabalho.
Não por acaso, essas mesmas crianças estarão mais predispostas à depressão na adolescência, esvaziadas de imaginação, de vida interior, de capacidade criativa. O universo amoroso ou familiar que substitui o espaço público como gerador de valores está totalmente atravessado pela linguagem da eficiência comercial. "Quem vai olhar para um modelo fora de linha como eu?" "Como promover a otimização de meus finais de semana?" "Fiz as contas: com o que gastei na análise de meu filho já poderia ter trocado de carro duas vezes" (nesse caso, o analista sente-se tentado a sugerir que, de fato, ficaria mais em conta trocar de filho).
Vale ainda mencionar o estranho silêncio, nos consultórios dos analistas, em torno do eterno mistério do desejo e da diferença sexual. A falta de objeto que caracteriza a atração erótica parece ter sido ofuscada pela onipresença de imagens sexuais nos outdoors, na televisão, nas lojas, nas revistas -por onde olhe, o sujeito se depara com o sexual desvelado que se oferece e o convida.
As fantasias sexuais são todas prêt-à-porter. Seria ok, se o suposto desvelamento do mistério não produzisse sintomas paradoxais. O tédio, em primeiro lugar, entre jovens que se esforçam desde cedo para dar mostras de grande eficiência e voracidade sexuais. As intervenções cirúrgicas no corpo, de consequências por vezes bizarras, em rapazes e moças que pensam que a imagem corporal perfeita seja a solução para o mistério que mobiliza o desejo.
A reificação do sujeito identificado como mais uma mercadoria se revela no medo generalizado de não agradar. O mistério do desejo persiste, assim como não deixa de existir o inconsciente: mas é como se suas manifestações não interrogassem mais os sujeitos.
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MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta, autora de "O Tempo e o Cão" (ed. Boitempo).
Fonte: FSP, 06/09/2009
AGORA MINHA INTERPRETAÇÃO DO TEXTO DA MARIA RITA, RELACIONANDO COM OUTRAS OBRAS QUE LI.
Após a leitura do texto “Sonhos do Avesso” é possível perceber a atualidade numa visão profunda marcada por determinismos psíquicos e sociais. A partir do momento que a subjetividade é construída socialmente, com nossa intervenção ou até antes de existirmos, o capitalismo abordado no texto da autora, passa a ser pensado como o ponto fundamental da ocorrência das transformações que caracteriza a subjetividade contemporânea.
Maria Rita Kehl trás dois importantes conceitos que são indispensáveis para explicar a transformação que o capitalismo gerou na sociedade e que define as subjetividades, são eles: a alienação e o fetichismo. Ela compara esses conceitos que podem ser da psicanálise com Freud, e os atribui a cenários sociais, no caso, sociedade de consumo ou capitalismo. A alienação diz respeito ao nível de inserção do sujeito na cultura, ao desejo. O desejo se dá na sociedade. Ao contrário de outras épocas, em que nós procurávamos sentido para nossa vida e nossos desejos, hoje segundo o texto, houve uma “banalização” desses desejos, gerando uma falta. O desejo é hoje instruído por uma lógica de mercado, uma lógica consumista. O Fetichismo que é um elemento de símbolo sexual ou símbolo de desejo, é comparado ao fetiche de mercadoria. O sujeito projeta uma relação social estabelecida ou afetos.
Gaulejac(2001) trabalha os determinantes sociais e psíquicos na construção da subjetividade de cada sujeito, afirmando que nós somos multideterminados, pela sociedade, cultura e até pelo lado biológico,sendo um ser singular. Em contrapartida, existem determinações psíquicas universais que, segundo Mezan(2002), pode ser a linguagem, criatividade, a presença das pulsões, existência das defesas inconscientes, fantasias e tudo aquilo que Freud considerou como “aparelho psíquico”. Com essas condições psíquicas estabelecidas, antes mesmo de sua formação, o sujeito se depara com a essa falta.
O texto então é uma comparação dos sintomas da histeria ou de outros quadros clínicos dos tempos de Freud, em que a repressão ou um símbolo de autoridade eram vistas claramente. Existia um “Centro de gravidade”que fazia a transmissão da lei. Não podemos dizer que sumiram os quadros clínicos e os sintomas graças a época de hoje com o capitalismo, mas devemos repensar a subjetividade. Kehl fala de novas expressões sintomáticas existentes na clínica da atualidade, mas como essas estruturas clínicas são ditas como universais, elas tentam responder ao antigo conflito das pulsões que sempre existiu. Nas próprias palavras da autora, o conflito hoje se dar graças as pulverizações das referências que outrora sustentavam o sujeito e até reprimiam.
Pode-se dizer que hoje, os bens materiais e o capital que são os centros de referência dos sujeitos. Os antigos símbolos de autoridade como a família, Deus, figura paterna viraram milhares de coisas optativas oferecidas pelo mercado. O mercado exige muito, fazendo com que as pessoas se sintam culpadas por não usufruírem tudo que ele pode oferecer, isto é, gozar de maneira satisfatória. Hoje em dia o sujeito se constitui através do consumo e não através dos laços sociais. Em vez de palavras, afeto ao outro, ele prefere o consumo, muitas vezes desenfreado buscando até o uso dos psicofármacos, que é uma maneira de sair de si e sair da situação de culpa por essa situação.
O mercado norteia sua vida, de várias formas estabelecidas. A mídia é uma mediadora deste norteamento. Para acompanhar as tendências do mercado, tenta se “defender” da frustração, usando recursos como plásticas corporais, remédios, vagas no mercado com grande status social, sempre buscando o sucesso imediato e popularidade. O sujeito também pode entrar num estado de Vergonha, é o que define Gaulejac(2001), um sentimento cuja origem está associada no confronto do sujeito com o mundo social e com sua cultura, no caso da nossa, o capitalismo, afastando de certa forma, do sistema de mercado. Mas com a não aprovação do outro quanto a esse afastamento, o indivíduo segue culpado e confuso com a sociedade atual. O excluído pela vergonha mostra uma quebra narcísica, é tudo aquilo que tememos nos tornar.
Pensando dessa forma, que o sistema capitalista pode determinar nossa singularidade, lembra-se aqui do que Gaulejac(2001), define sobre os sujeitos na visão da sociologia clássica, onde nós acreditamos ser sujeitos, mas no fundo somos suporte de um mecanismo social superior a nós e que desconhecemos.
Através do inconsciente entramos sempre em conflito com a sociedade, kehl exemplifica a seguinte ação: Jovem que queria ser um predador sem escrúpulos, eliminar os rivais e abusar sem pudor das mulheres. Ação esta que representa, um obsessivo com escrúpulos, com fantasias perversas se queixando do seu bom comportamento. Prova-se assim que o mundo psíquico e o universo social, segundo Enriquez(2001), são afetados por desconhecimentos ou de conhecimentos equivocados, inconscientemente e até mesmo consciente. É por esses conflitos pulsionais existentes nas diversas sociedades que ninguém conseguiria viver num mundo transparente em que cada qual saberia o que o outro pensa. Enriquez diz que é por isso que as utopias não podem ser realizadas.
Sendo o capitalismo grande controlador das relações sociais contemporâneas, questionamos o seguinte: O homem necessita de fato de um símbolo de poder central, algo para espelhar suas ideologias? Essa sociedade em que os sujeitos são donos do seu próprio destino sem uma referência central parece mais desanimadora.
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